Em Ferral, VIla Nova, no concelho de Montalegre ergue-se a
monumental ponte do diabo, medieval, cheia de beleza e
lendas.
Lá para as bandas de trás-os-montes, onde Vieira do Minho
namora com Montalegre, em terras de Barroso, a gente era
muito
simples e forte, crente e temente a Deus e medrosa do
Diabo.
Em tempos antigos houve um criminoso que vagueava e se
escondia na região, acabando por ser descoberto e
perseguido
pelas autoridades.
Na sua fuga, facilitada por bem conhecer o local,
deparou-se
com um rio que não podia ultrapassar. O rio Rabagão.
Em desespero pediu ajuda ao diabo que prontamente lhe
perguntou:
- Que queres de mim?
- Passa-me para a outra margem deste maldito rio e
dar-te-ei a
minha alma. Responde-lhe o criminoso.
O diabo não podia querer mais, nem melhor, e logo faz
aparecer
uma ponte, mandando o criminoso atravessar sem olhar para
trás. Mal ele tinha acabado de chegar à outra margem do
rio ,
o demónio fez desaparecer a ponte.
O tempo passou, o criminoso encontrou novo esconderijo.
Um dia a morte bateu (-lhe ) à porta
- Venho-te buscar, alma do diabo.
Aterrorizado, pede tréguas e aflito, manda chamar o padre
para
lhe tirar o diabo e dar-lhe os últimos sacramentos.
O padre encapotado, zeloso e corajoso, ritual no bolso,
água
benta no hissope, corre a cavalo em direcção ao leito do
arrependido.
Qual não foi o seu espanto ao chegar ao caudaloso rio
Rabagão:
Não havia ponte que unisse as suas margens, sobre as
rochas ,
torneadas pelas águas, no mesmo local, onde o criminoso
passara em tempos.
Revoltado, no afã da pressa para aliviar o cristão aflito,
em
desespero, ora a Deus:
"Meus Deus valei-me, ajudai-me, de forma a passar o rio
para
chegar a tempo, junto do doente".
Esperou o milagre, mas desesperado pela demora, grita para
a
margem da enorme cascata ruidosa, batendo em cachão, sobre
rochas já furadas, em enormes caldeiras onde a água
rodopiava
como um moinho:
- Por Deus das águas puras do Rabagão ou pelo Diabo das
pedras
negras, apareça aqui uma ponte de pedra, gritou o cura
cheio
de medo. A sua voz ecoou pelos vales fundos da Misarela e
respondeu o eco .uma ponte de pedra, uma ponte de pedra,
uma
ponte.
Era já lusco fosco, a noite ia chegando, as sombras do
freixo
e da oliveira cresciam pela encosta.
Os olhos do cura avistam na margem de lá, um bicho negro,
em
forma de grande carneiro, cornos retorcidos.
- És tu Satanás? E gritou forte mas medroso: Vade retro! E
de
imediato arroja o hissope da água benta que leva para
aspergir
o criminoso moribundo, em direcção à figura téctrica na
outra
margem da cascata, onde arreganhava os dentes brancos.
E qual não foi o seu espanto, ia surgindo em arco, uma
bela
ponte de pedra assente em ciclópicas e acasteladas rochas,
conforme o arco feito pela água benta.
E ouviu, na confusão das águas em cachão, que até as
pedras
moldam e furam, um estrondo, com cheio a enxofre:
- Arrebenta tu diabo, que esta alma não é tua, disse já
aliviado do medo.
Agradecendo o milagre, seguiu e conseguiu feliz, chegar a
socorrer com êxito o pecador arrependido.
Desde então a ponte da Misarela, ficou na lenda com fama
de
ponte mágica, ponte do diabo, ponte de virtude.
A fama da ponte cresceu e subiu mais alto, quando dois
irmãos
santos do sec. X, Gervásio e Senhorinha, vieram dos lados
de
Vieira do Minho, a caminho de Santiago de Compostela por
Celanova , onde visitam o Bispo S. Rosendo, de que eram
primos.
Espalhou-se nas redondezas a fama de ponte santa, águas
milagrosas, fecundas, onde o diabo não tem poder, porque
foi
derrotado.
Por terras de Barroso, de aldeias serranas, vida agreste,
de
casais jovens, nasciam muitos filhos, aparados por
parteiras
curiosas, à lareira, no escano, com grande caldeira a
fumegar
com água quente, no meio de muitas rezas: benza-o Deus!
A mortalidade infantil, cada vez maior, e o receio de se
perderem as almas daqueles anjinhos inocentes, bate à
porta do
casal barrosão.
A jovem mulher preocupada, pega na saca da merenda, e diz
para
o marido:
-Ó homem, morreu-nos o 1º filho. agora já de novo prenha
de 8
meses. E se nos morre o que vai nascer, sem baptismo como
o
outro?
- Vamos àquela ponte de virtude, que dizem de águas santas
benzidas por dois santos e um bispo, lá prós lados de S.
Marinha de Ferral?
E lá foram a pé os dois, desceram até à Misarela, cheios
de
coragem e esperança de vida. Era Outono, as noites
arrefecem,
acendem o lume no meio da ponte, comem o carolo de pão. E
ficam despertos, à espera do 1º passante depois da
meia-noite
e antes do nascer do Sol.
Os vizinhos de Sidróes ao sentirem fumo na ponte, diziam:
vamos que hoje há baptizado.
Já quase pensando voltar outro dia, ao longe, ao romper da
aurora, ouvem passos de socos, nas lajes da calçada.
- Quem vem lá, pergunta o homem, a medo?
- Gente de paz. Surge um barrosão, embrulhado na sua capa
de
burel, sacho debaixo do braço, rosto alegre e diz-lhes:
- Já sei que quereis ter um filho vivo.
- Sim, ouvimos falar dos milagres desta água tirada
debaixo da
ponte. O senhor, por amor de Deus, faz-nos o baptizado?
- Sim, irmãos, eu já adivinhava, trouxe corda e caneco
para a
tirar mais fácil e pura.
O passante assim o disse, assim o fez. Prendeu o caneco de
barro negro de Nantes a uma corda comprida, deixou
mergulhar o
caneco a meio do arco da ponte e puxou-o cheio a verter.
A mulher ergue a saia de burel e o saiote vermelho, ao
lado do
marido, e o Barrosão, verte sobre aquela barriga jovem,
prenhe, oval, a água límpida e fria e diz palavras rituais
e
sagradas:
"Eu te baptizo criatura de Deus. Se fores rapaz, serás
Gerváz,
se fores menina, serás Senhorinha. Em louvor de Deus e da
Virgem Maria Padre-nosso e Ave-maria".
Sussurram a oração e agradecem muito ao padrinho, que ali
fez
de padre fazendo um pré- baptismo, com garantias de ao
nascer
ser realmente padrinho.
O casal regressa a casa contente, subindo a ladeira até S.
Marinha, onde os Gervázios e Senhorinhas, vivos e mortos
por
toda a região de Barroso e Basto e Minho abundam ainda
hoje,
devido a este curioso ritual, assente na crença que as
águas
do Rabagão, antes de entrarem no Cavado têm a virtude de
dar
vida aos que ali passam na barriga da Mãe.
Quem o contou está aqui e quem o quer saber vai lá.
Zé Luís
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